sábado, 14 de maio de 2011

Manifestação que "carnavalizou" São Paulo no dia de hoje!


Hoje um protesto organizado via facebook "carnavalizou" um pouco a cidade de São Paulo!

Alguns moradores do bairro nobre de Higienópolis quererem vetar a construção de uma estação de metrô... Dentre outras "justificativas", dizem que isso levará "gente diferenciada"ao local... Um eufemismo para "pessoas pobres"...

De forma bastante humorada e inusitada, organizaram o "churrascão da gente diferenciada"... O evento foi criado e divulgado através do facebook, e centenas de pessoas foram ao local protestar...

O ato, de maneira simbólica e também carnavalizada, quis subverter a ordem das coisas, tentou dar voz às pessoas agredidas com a fala preconceituosa daqueles que pretendem criar nichos na cidade, verdadeiras bolhas acessíveis somente a alguns poucos, sem lembrar que o espaço público deve ser ocupado de forma democrática e que todos possuem o direito fundamental à cidade...

Vocês podem conferir algumas fotos em:

http://www.flickr.com/photos/jaquesena


domingo, 8 de maio de 2011

Primeiras impressões: Materialismo Mágico


Em 19 de abril estreiou a exposição do pintor Maurits Cornelis ESCHER no Centro Cultural Banco do Brasil, que fica no centro da cidade de São Paulo. Faz anos que conheço suas obras e observo, atenciosamente, a mágica de Escher com seu surrealismo matemático que explora o impossível e o infinito em formas geométricas quase tateáveis.

Ao conhecer a obra intitulada "Materialismo Mágico" de Warat, a relação com o pintor Escher foi quase automática. A obra "Cascata" de Escher, mostrada acima, foi a imagem perfeita para ilustrar o título de Warat em minha apostila encadernada. Ora, bastava observar atentamente o quadro que se vê a água subindo e caindo em cascata, de forma natural. E mágica. Escher consegue materializar o mágico, o impossível, o irreal.

Porém, ao ver a exposição de Escher, tive a oportunidade de perceber também grandes diferenças entre os autores. Um diálogo continuava se travando em minha cabeça, cada vez mais dialético.

Escher queria explorar o mundo de forma equilibrada e simétrica. Ao ver o caos instalado na realidade do dia-a-dia, focava-se nas formas geométricas perfeitas, acabadas, para assim retratar um surrealismo perfeito, que consegue trazer a equação da geometria para o mundo real, assimétrico, desconcertado. O autor explica que não há nada mais bonito numa forma geométrica e tentava se focar em gravuras geométricas para assim organizar, ao menos, o seu mundo. Em uma de suas obras, intitulada "Ordem e Caos" (Order and Chaos, ao lado), fica claro tal contraste.

Apesar de Warat falar da mágica do surrealismo, tal surrealismo seria de um delírio real. Busca na expressão "materialismo mágico", uma sensibilização concreta. Em suas palavras: Para o movimento surrealista de arte e direito, o importante é tratar de unir ou articular os dois movimentos, unificá-los dialogicamente e pensar que a transformação das condições materiais de existência dependem de uma transformação simultânea das condições de produção da subjetividade; que por sua vez, não poderá se concretizar plenamente se não se modificar, conjunta e de modo uníssono, as condições materiais de existência. Com fome e miséria é difícil modificar a subjetividade, levá-la rumo à autonomia. E se não nos dirigimos e lutarmos para alterar nossas condições de produção da subjetividade, não poderemos superar a fome, a exclusão e a existência de gente tratada como inexistente, gente que inclusive não tem ela mesma consciência de sua existência.


Warat produz, portanto, seu materialismo mágico partindo do mundo desconcertado que grita por sensibilização. Tal pedido pode ser concretizar pela Arte. E com a materialização da sensibilidade, conseguiríamos alterar o caos cotidiano.

Minha comparação com Escher soou equivocada a partir de tais conclusões. Ora, Escher e Warat eram opostos em suas obras! Porém, conversando com a Jaqueline (CWSP), fui lembrada de um conceito que Warat gostava muito, de Bakhtin, que falava que a obra, depois de pronta, não é mais do seu autor... ela é do mundo, e por isso, pode assumir os mais variados sentidos. A intertextualidade de Bakhtin, inspirou os modernistas com a antropofagia, e o conceito da carnavalização, foi pegado emprestado por Warat e inserido em seu pensamento jurídico.

Mantive, assim, minha capa do Materialismo Mágico e os autores apertaram as mãos em minha cabeça, numa complementaridade necessária e carnavalizada e, independentemente dos motivos, na eterna busca pela Arte.


terça-feira, 3 de maio de 2011

Nosso apoio: Casa Warat Goiás no evento da ABEDi - Sudeste

Belo Horizonte, 13 de abril de 2011

Prezados Abedianos,

Comunico a todos que na data de 11 de maio de 2010, em Montes Claros-MG, será ministrada a oficina "Entre o Direito e a arte: a proposta da Casa Warat", consoante programação do Congresso da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDI), sediado pela ABEDI Minas, a qual está sendo organizada pelos seguintes integrantes:

Eduardo Gonçalves Rocha
Professor Assistente da Universidade Federal de Goiás

Paulo Dante Neto
Estudante da Universidade Federal de Goiás

Nádia Alves Pinheiro
Estudante da Universidade Federal de Goiás

Jordana Ribeiro de Ávila
Estudante da Universidade Federal de Goiás

Contamos com a participação de todos, visto que tal atividade é imprescindível para a reflexão acerca da EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA que este Congresso almeja realizar.


Cordialmente,

Luciana Cristina de Souza
Coordenadora do Núcleo Estadual da ABEDI em Minas Gerais
(ABEDI Minas)

domingo, 1 de maio de 2011

Do manifesto do surrealismo... ao manifesto do surrealismo jurídico!

"Juntar o Direito à poesia já é uma provocação surrealista. É o crepúsculo dos deuses do saber. A queda de suas máscaras rígidas. A morte do maniqueísmo juridicista. Um chamado ao desejo. Um protesto contra a mediocridade da mentalidade erudita e, ao mesmo tempo, um saudável desprezo pelo ensino enquanto ofício. É recriar o homem provocando-o para que procure pertencer-se por inteiro, para que sinta uma profunda aversão contra as infiltrações de uma racionalidade-culposa e misticamente objetivista, convertidade em 'gendarme' da criatividade, do desejo, assim como de nossas ligações com os outros.

A poesia possibilita-lhe isso. Traz em si a visceral compreensão das limitações que padecemos, colocando em evidência a ordem artificiale mortífera de uma cultura impregnada de legalidades presunçosas. Ela pode servir para despertar os sentidos e os desejos soterrados e desencantados por séculos de saberes, preocupados, estes, em garantir todo e qualquer tipo de imobilismo. Praticando a poesia, teremos a possibilidade de fazer triunfar o desejo sobre o bom senso e os bons sentimentos, deixando-nos, assim, sem ouvidos para os chamados valores nobres e verdadeiros, aqueles que sacralizam, com civismo, o amor ao poder. É o desejo destruindo de um só golpe os Deuses e os Patrões. É a semente da subversão onde menos se espera encontrá-la: a lanterna mágica do desejo.

(...)

Para o surrealista, o absurdo não tem uma conotação pejorativa: é a forma de protesto que se opõe ao jogo do coerente, do lógico e do demonstrado, categorias empregadas como critérios incontrovertíveis de verdade nos grandes relatos que a ciência produz para imaginar o mundo.

No surrealismo, o absurdo reitera a necessidade de múltiplas compreensões do mundo. O absurdo surrealista é uma saída espontânea para procurar a voz humana no meio dos poetas, no meio dos desejos.

Declarar, afirma Breton, que a razão é a essência do homem, já é dividi-lo em dois, coisa que a tradição clássica nunca deixou de fazer. Esta, acrescenta, distinguiu no homem o que é razão, e que, por isso mesmo, é verdadeiramente humano, e o que não é razão, e que, por esse fato, parece indigno do homem: instintos, sentimentos e desejo. Um corte mortalmente perigoso e onipotente que o surrealismo pretende surpreender em suas faltas, chamando a poesia.

Valendo-se da poesia, o surrealismo mostra sua firme intenção de derrubar as margens estreitas do racionalismo, sacudindo-nos, ao mesmo tempo, para que despertemos de nossas ilusões e dependências em relação a todas as convenções vigentes." (LAW)

(continua...)

domingo, 17 de abril de 2011

A Rua Grita Dionísio!

Trabalhar com o ensino do Direito não é tarefa fácil. As escolas de Direito, para além de um espaço de poder, são fomentadoras privilegiadas de construção de identidades artificiais, de discursos diferenciadores, de saberes surdos.



Por isso é muito pertinente o diagnóstico de Warat: "O racionalismo não é somente uma epidemia da razão jurídica. Como forma ideológica da razão este ismo não é só um mal das práticas e dos processos de conhecimento do Direito. Ele contamina todos os ofícios e saberes derivados da razão tecno-instrumental. Contamina todo o corpo social. O seu maior sintoma se manifesta como perda da sensibilidade, em mim, no meu vínculo com os outros e no modo de perceber o mundo, na frieza da ficção de verdade e na fuga alienante que proporciona às abstrações e os anseios modernos de universalidade que não nos deixam perceber o que a rua grita, como mostra esse velho filme de Emrique Muinõ e Angel Maganã, de 1948: A rua grita. A rua grita e não é escutada pelos juízes, advogados, teóricos do Direito, professores, médicos, políticos, etc., instituições onde o clamor da rua não chega bloqueada pela razão técnico-instrumental. Tomemos como exemplo uma instituição: as clínicas de assistência psicológica. Nelas, da mesma forma que na magistratura, predominam as normas sobre as pessoas. Um psiquiatra, em uma clínica, em quase todos os casos, aplica as regras sem considerar as necessidades e as particularidades de cada paciente".


WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e Cartografia. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2010, p. 53.

domingo, 3 de abril de 2011

"NÃO É O MEDO DA LOUCURA QUE VAI NOS OBRIGAR A HASTEAR A MEIO-PAU A BANDEIRA DA IMAGINAÇÃO"




"SEGREDOS DA ARTE MÁGICA SURREALISTA

Composição surrealista escrita, ou primeiro e último jato

Mande trazer com que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais confortável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo, dos talentos de todos os outros. Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada. É bastante difícil decidir sobre a frase seguinte: ela participa, sem dúvida, a um só tempo, de nossa atividade consciente e da outra, admitindo-se que o fato de haver escrito a primeira supõe um mínimo de percepção. Isto não lhe importa, aliás; é aí que reside, em maior parte, o interesse do jogo surrealista. A verdade é que a pontuação se opõe, sem dúvida, à continuidade absoluta do vazamento que nos interessa, se bem que ela pareça tão necessária quanto a distribuição dos nós numa corda vibrante. Continue enquanto lhe apraz. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça cair, por uma falta da inatenção, digamos, que o leve a cometer um pequeno erro, não hesite em cortar uma linha muito clara. Após uma palavra cuja origem lhe pareça suspeita, ponha uma letra qualquer, a letra “l”, por exemplo, sempre a letra “l”, restabeleça o arbitrário, impondo esta letra como inicial à palavra que vem a seguir."
E aí, quem se aventura a tentar?

A provocação acima foi extraída do "Manifesto do Surrealismo", escrito por André Breton, em 1924. Seguem alguns trechos desse importante texto:

"Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão (o que ele chama decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. SE conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.

Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?

Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provoca-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.

Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.

O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.

Ao contrário, a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora hoje em dia desses livros ridículos, dessas peças insultuosas. Fortifica-se incessantemente nos jornais , e põe em xeque a ciência, a arte, ao aplicar-se em bajular a opinião nos seus critérios mais baixos; a clareza vizinha da tolice, a vida dos cães.

(…)


Se um cacho de uvas não tem duas sementes iguais, como querem que lhes descreva este bago pelo outro, por todos os outros, que dele faça um bago bom para comer? Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os cérebros. O desejo de análise prevalece sobre os sentimentos. Disso resultam dilatadas exposições cuja força persuasiva reside na sua própria singularidade, e que iludem o leitor pelo recurso a um vocabulário abstrato, bastante mal definido, aliás.

(…)


Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas.


(…)


O homem põe e dispõe. Depende dele só pertencer-se por inteiro, isto é, manter em estado anárquico o bando cada vez mais medonho de seus desejos. A poesia ensina-lhe isso. Traz nela a perfeita compensação das misérias que padecemos. Ela pode ser também uma ordenadora, bastando que ao golpe de uma decepção menos íntima se tenha a idéia de tomá-la ao trágico. Venha o tempo quando ela decrete o fim do dinheiro e parta, única, o pão do céu para a terra!


(…)


Certa noite então, antes de adormecer, percebi, nitidamente articulada a ponto de ser impossível mudar-lhe uma palavra, mas bem separada do ruído de qualquer voz, uma frase bem bizarra que me alcançava sem trazer indício dos acontecimentos aos quais, segundo o testemunho de minha consciência, eu estava preso, nessa ocasião, frase que me pareceu insistente, frase, se posso ousar, que batia na vidraça. Rapidamente tive a sua noção, e já me dispunha a passar adiante quando o seu caráter orgânico me reteve. Na verdade, esta frase me espantava; infelizmente não a guardei até hoje, era algo como: “Há um homem cortado em dois pela janela”, mas não poderia haver ambigüidade, acompanhada como estava pela fraca representação visual de um homem andando, e seccionado a meia altura por uma janela perpendicular ao eixo de seu corpo. Fora de dúvida era a simples aprumação no espaço de um homem debruçado à janela. Mas esta janela tendo seguido o deslocamento do homem vi que se tratava de uma imagem de tipo bastante raro e logo pensei em incorporá-la a meu material de construção poética. Assim que lhe concedi este crédito ela deu lugar a uma sucessão quase ininterrupta de frases que não me surpreenderam menos e me deixaram sob a impressão de uma tal gratuidade que me pareceu ilusório o império que até então eu mantinha sobre mim mesmo, e só pensei então em liquidar a interminável disputa travada em mim (Knut Hamsun põe na dependência da fome este tipo de revelação que me assaltou, e talvez não esteja ele errado (o fato é que nessa época eu não comia todos os dias). Com toda certeza são de fato as mesmas manifestações que ele relata nestes termos:

“No dia seguinte acordei cedo. Estava ainda escuro. Meus olhos estavam abertos fazia tempo, quando ouvi o relógio do apartamento inferior bater cinco horas. Quis novamente dormir mas não consegui, eu estava completamente desperto e mil coisas baralhavam na minha cabeça. De repente me vieram uns bons trechos, próprios para utilização num esboço, num folhetim; subitamente, por acaso, achei frases muito bonitas, frases como jamais escreverei. Eu as repetia lentamente, palavra por palavra, eram excelentes. E vinham mais outras. Levantei-me, peguei lápis e papel na mesa atrás de minha cama. É como se eu tivesse rompido uma veia, uma palavra seguia outra, colocava-se em seu lugar, surgiam as réplicas, em meu cérebro, eu gozava profundamente. Os pensamentos me vinham tão rapidamente e fluíam tão abundantemente que eu perdia uma porção de detalhes delicados, porque meu lápis não podia andar tão depressa, e entretanto eu me apressava, a mão sempre em movimento, eu não perdia um minuto. As frases continuavam a brotar em mim, eu estava prenhe de meu assunto”.

Apollinaire afirmava que os primeiros quadros de Chirico haviam sido pintados sob a influência de distúrbios cenestésicos (enxaquecas, cólicas)
.

Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. Parecia-me, ainda me parece – a maneira como me chegara a frase do homem seccionado o comprovava – que a velocidade do pensamento não é superior à da palavra e que ele não desafia forçadamente a língua, nem mesmo a caneta que corre. Foi com estas disposições que Philippe Soupault, a quem eu comunicara estas primeiras conclusões, e eu começamos a escrevinhar, pouco nos importando com o que pudesse suceder literariamente. A facilidade de realização fez o resto.


No fim do primeiro dia podíamos ler umas cinqüenta páginas obtidas por este meio, e começar a comparação de nossos resultados. No conjunto, os de Soupault e os meus mostravam notável analogia: mesmo vício de construção, falhas similares, mas também, de cada lado, a ilusão de um estro maravilhoso, muita emoção, escolha considerável de imagens de uma tal qualidade que não teríamos sido capazes de preparar uma só delas, mesmo com muito empenho, um pitoresco muito especial, e de um lado e de outro, alguma proposição de pungente burlesco. As únicas diferenças entre nossos dois textos me pareceram corresponder essencialmente a nossos temperamentos recíprocos, o de Soupault menos estático que o meu, e se ele me permite esta leve crítica, ao fato de Ter ele cometido o erro de distribuir, ao alto de certas páginas, e sem dúvida por espírito de mistificação, algumas palavras à guisa de títulos. Em compensação, devo-lhe a justiça de dizer que ele se opôs sempre, com toda energia, a qualquer retoque, à mínima correção ao curso de toda passagem desse gênero que me parecia até descabida. Tinha ele toda razão nisso. É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura. A vós que escreveis, estes elementos, na aparência, vos são tão estranhos quanto a outro qualquer, e naturalmente desconfiais. Falando poeticamente, eles se reconhecem sobretudo por um alto grau de absurdidade imediata, sendo o próprio desta absurdidade, num exame mais aprofundado, dar lugar a tudo que há de admissível, de legítimo no mundo: a divulgação de certo número de propriedades e de fatos não menos objetivos, em suma, que os outros.

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero, sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupault e eu designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para beneficiar nossos amigos. Creio não ser mais necessário, hoje, repisar esta palavra, e que a acepção em que a tomamos acabou por prevalecer sobre a acepção apollinairiana. Ainda com maior razão poderíamos ter-nos apossado da palavra SUPERNATURALISMO, empregada por Gerard de Nerval na dedicatória de Filles de Feu. Com efeito, parece que Nerval possuiu às mil maravilhas o espírito ao qual recorremos, enquanto Apollinaire não possuía senão a letra, ainda imperfeita, do surrealismo, tendo sido incapaz de lhe traçar um esboço teórico que valha a pena. Eis duas frases de Nerval que acerca disso me parecem bem significativas:

Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, o fenômeno que você citou acima. Como você sabe, há certos contistas que não podem inventar sem se identificarem aos personagens de sua imaginação. Você sabe com que convicção nosso velho amigo Nodier narrava como ele tivera a desgraça de ser guilhotinado na época da Revolução; ficava-se de tal modo persuadido que se ficava querendo saber como ele conseguira recolocar sua cabeça.

... E já que você teve a imprudência de citar um soneto composto neste estado de devaneio onírico SUPERNATURALISTA, como diriam os alemães, vai ouvi-los todos. Não são nada mais obscuros do que a metafísica de Hegel ou as MEMORÁVEIS de Swedenborg, e perderiam encanto se fossem explicados, se a coisa fosse possível, conceda-me ao menos o mérito da expressão...

Só com muita fé poderiam nos contestar o direito de empregar a palavra SURREALISMO no sentido muito particular em que o entendemos, pois está claro que antes de nós esta palavra não obteve êxito. Defino-a pois uma vez por todas.

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.


ENCICL. Filos. O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. Tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida. Deram testemunho de SURREALISMO ABSOLUTO os srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Eluard, Gerard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.


(…)


É até mesmo permitido intitular POEMA o que se obtém pela agregação tão gratuita quanto possível (observemos, faz favor, a sintaxe) de títulos e fragmentos de títulos recortados dos jornais:

POEMA

Uma risada

de safira na ilha de Ceilão

As mais belas palhas

Têm a cor esmaecida

Na prisão

Numa fazenda isolada

NO DIA-A-DIA

agrava-se

O agradável

Um caminho carroçável

vos conduz ao desconhecido

O Café

roga por si mesmo

O ARTESÃO QUOTIDIANO DE VOSSA BELEZA

Senhora,

um par

de meias de seda

não é

Um salto no vazio

UM CERVO

Antes de tudo o amor

Tudo poderia acabar tão bem

Paris é uma grande aldeia

Vigial

o fogo incubado

a oração

Sabei que

os raios ultravioleta

terminaram seu trabalho

bom e rápido

O PRIMEIRO JORNAL BRANCO

DO ACASO

Vermelho será

O cantor errante

ONDE ESTARÁ?

na memória

em sua casa

NO BAILE DOS ARDENTES

Faço

dançando

O que se fez, o que se fará


O surrealismo, tal como o encaro, declara bastante o nosso não-conformismo absoluto para que possa ser discutido trazê-lo, no processo do mundo real., como testemunho de defesa. Ao contrário, ele só pode justificar o estado completo de distração da mulher em Kant, a distração das “uvas” em Pasteur, a distração dos veículos em Curie são a esse respeito profundamente sintomáticos. Este mundo só relativamente está à altura do pensamento, e os incidentes deste gênero são apenas os episódios até aqui mais marcantes de uma guerra de independência, da qual tenho o orgulho de participar. O surrealismo é o “raio invisível” que um dia nos fará vencer os nossos adversários. “Não tremes mais, carcaça.” Neste verão as rosas são azuis, a madeira é de vidro. A terra envolta em seu verdor me faz tão pouco afeito quanto um fantasma. VIVER E DEIXAR DE VIVER É QUE SÃO SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS. A EXISTÊNCIA ESTÁ EM OUTRO LUGAR."

Quadro: Haven - Vladimir Kush

domingo, 20 de março de 2011

Ata literária da fundação CWSP



ATA LITERÁRIA (OU PEQUENO-GRANDE MANIFESTO) DE FUNDAÇÃO DA CASA WARAT SP

São Paulo, 12 de fevereiro de 2011.

Numa ilha verde em meio à visão de uma metrópole opressora, Leopoldo, o irmão argentino mais brasileiro e, quem sabe, baiano, Jaque e Levy, duas individualidades que se somam nas diferenças, Mariana e André, duas diferenças que se multiplicam em infinitas possibilidades de cores, amores e ideias, reuniram-se com uma única certeza: de que uma avenida não é feita apenas de concreto, mas também de amor, loucura e poesia.

Cansados de se sentirem sozinhos em meio à multidão indiferente, do esquecimento dos outros, das reificações e imediatismos, das artificialidades e automatismos, da renúncia de si, que contamina as relações entre as pessoas com um imperativo de pressa.

Cansados das passividades, de um desespero intoxicante, da falta de ar, de um cotidiano cinza, e dos conselhos que apontam que a saída está na aceitação das avenidas anestesiadas de normas e regras, que conduzem a um agir no qual se esquece da vida que se sente.

Cansados da papelização das pessoas, da processualização das dores, da protocolização da vida, pensaram na utopia de uma ilha flutuante que pode chegar a muitos portos, por muitos caminhos. Uma ilha que pode deixar de ser ilha e plasmar territórios de música, arte, intervenções urbanas, para produzir lugares livres que se fundam na liberdade criativa dos outros.

Aquele lugar onde esse pequeno grupo se reuniu era também um oásis. Um oásis iluminado a velas que desapareciam no ar. Um oásis mágico, em que a selva de concreto, de repente, tornara-se verde. Lá, incrivelmente, fazia frio em pleno verão. E lá dançaram até catala e trégua, e brindaram com um drink de fernet portenho.

E foi lá, num rizoma tão fecundo, que essa Casa, mais uma Casa nômade, começou a brotar.

Lembraram daquela cidade cinza recortada, daquele lugar que pedia socorro ao mesmo tempo que mostrava que todos estavam SÓS.

E nele colaram flores coloridas, muitas flores. E viram cronópios, aqueles bichinhos verdes e úmidos, parecidos com micróbios, que se empolgam ao cantar e são atropelados, perdem o que levam nos bolsos e deixam as lembranças soltas pela casa... E quando chegam numa cidade desconhecida, os trens já partiram, os táxis não querem levá-los, chove a cântaros, e mesmo assim eles sonham que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados, e acordam felizes.

Viram que a cidade gris poderia ter muitas cores, poderia ter novamente realçadas as suas sutilezas.

Viram que nela poderia haver abraços. Repararam que há beijos bem em frente às Arcadas e se lembraram que é sim possível inscrever o amor no poder.

Viram que a luta continua.

Perguntaram-se, então, do porquê do oásis. Não seria fechado demais? Exclusividade demais? Não seria um encastelamento, um ressoar contido? Não estaria, assim, comprometido o poder emancipatório das idéias nele (trans)formadas?

Foi assim porque a Casa Warat é um espaço mágico. Não foram até o oásis, ele simplesmente formou-se diante dos olhos esperançosos, sem que se dessem conta. Foi assim, mágico, porque é assim que é. E foi assim ao longo de quatro dias em que estiveram juntos.

Porque foram dias em que viveram aquela mesma cidade cinzenta de sempre, de uma forma tão intensa, que aqueles quatro paulistanos sentiram-se noutra cidade. E, ao final, todos tinham incrivelmente a mesma sensação: eram eles que viajavam, e não o seu querido irmão argentino, que revia São Paulo depois de tantos anos e a redescobria.

E naquela cidade cosmopolita viveram o Brasil e nela deram a volta ao mundo em 04 dias.

Sim, foi mágico, porque assim que é. Mas disso não se fala, sente-se. Vive-se e ponto. E é isso que eles querem mostrar.

Foi mágico, porque na cidade do caos, os caminhos subitamente apareciam, as vagas para estacionar brotavam logo à frente. Os semáforos estavam sempre amarelos. O material de trabalho simplesmente aparecia, assim como as idéias e os sentimentos em comum. Tudo fluía. Até a esperança aparecia - não aquela de que falava Cortázar, mas sim a do insetinho verde que costumam dizer que traz sorte.

Foi num oásis, porque na cidade do caos é necessário buscar um lugar em que se possa, simplesmente, parar.

Parar para respirar e lembrar que se têm pulmões que se podem encher profundamente de ar. Para sentir-se a si mesmo. Para ter paciência e viver um outro tempo, um outro ritmo. Parar e lembrar de sentir o corpo que se tem. E que ele pode se relacionar com os outros num sorriso, num abraço, em palavras de cuidado, num beijo, num olhar fraterno. E até mesmo num silêncio. Parar porque todos estão aqui e são indiferentes uns aos outros. E entre eles é como se houvesse barreiras, degraus invisíveis, que se proliferam, que contaminam, que afastam e anestesiam.

Somente num oásis, vivendo um outro tempo dentro do tempo, é que se torna possível olhar para dentro de si e dos outros.

Mas que fique claro que esse oásis, ou ilha flutuante, está aberto a quem quiser. A quem puder se deixar levar pelos sentimentos verdadeiros da essência humana. A quem conseguir deixar de lado toda essa prisão metódica que nos prende feito escravos... Entubando toda a cor descoberta e existente em potes hermeticamente fechados.

Queremos, então, o estardalhar dos vidros. Que respinguem as cores mil em cima dos mapas rasgados da cidade que não pára. Que nos faça sangrar o sentimento verdadeiro, inundando o calar silente pelo grito d’alma. Queremos expandir o espaço, ampliando as dimensões daquilo que se sente, daquilo que se vê. Do abraço.

Esse oásis, ou ilha flutuante, não se encerra em si mesmo. Deve expandir-se para além dos limites que o tornam oásis. Deve ampliar-se para além-mar de nosso mundo, de nossas barreiras. Deve inundar de um verde vivo, pulsante. Expandir-se para além dos limites desse delírio, utopia, sonho.

Mas com o que sonhamos?

Sonhamos com um cotidiano em que podemos deixar de ser famas para nos assumirmos como cronópios, seres desorganizadores, que vivem não de lembranças e regras rígidas que, cartesianamente, ordenam uma vida de mesmices seguras, mas de impulsos verdadeiros, do sentimento bruto e vivo.

Sonhamos em medir o tempo com o cuidado que merece o tempo – não o cuidado de dar corda em um relógio, mas com o cuidado de quem aprecia uma alcachofra folha por folha e, ao final, não vê encerrado um ciclo, terminado um caminho ou morta a esperança, mas sim um delicioso coração, que se pode comer com azeite, vinagre e, por que não, com chimichurri!

Sonhamos com uma pedagogia que rechace toda forma de reprodução de poder. Uma pedagogia do novo que não discrimina a diferença e que não faz do ensinamento egoísta uma finalidade no interior de relações de adulação fingida, de criatividades mortas, de discursos fundados no morrer cotidiano da esperança.

Desejamos o retorno ao desejo como fundamento para uma educação que não ordene verdades enclausuradas, mas que sussurre a libertação das verdades instituídas. Uma permanente tensão das fronteiras do saber rumo não a uma vulgarização do conhecimento, mas a descobertas de novas potencialidades, que podem estar silentes dentro de cada um de nós, ou, quem sabe, no sonho de um irmão ou na afetação estética provocada por uma irresignação de um fato da vida.

Desejamos conhe-ser diferente.

Na abertura ao diferente, que supera a previsibilidade pré-estabelecida e a segurança enjaulada. A possibilidade de surpreender-se no outro e nele se diluir. Permitir o seu devir em nós mesmos, de modo a garantir não uma experiência segura ou assegurada, mas correr o risco da suspensão de si mesmo.

Na abertura das cascas sedimentadas na desolação. No cair dos muros construídos, na redescoberta da essência humana. E que tal espírito vivo nos oriente frente às tragédias de um mundo doente de coração. Que nos permita enxergar, pois, o sentido para o prolongar da vida, de forma autêntica, sem a diluição ilusória do cotidiano.

E, finalizando (ou começando?), vamos “todos juntos!”... seguindo... fluindo... amando... buscando... tentando... Venham todos! Vamos juntos no bloco do “Custa, mas vai!”, que de forma carnavalizada e paulistana, parece sintetizar o nosso desafio e aquilo que nos une:


"Nós somos na Terra o grande milagre do amor:
E, embora tão diversa a nossa vida,
Dançamos juntos no carnaval das gentes,
Bloco pachola do "Custa mas vai".
E abre alas que eu quero passar!"
(Mário de Andrade, CLÃ DO JABUTI)

sábado, 12 de março de 2011

Manifesto Antropófago


Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.

De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a Caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.


OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)


Quadro: Canibalismo otoñal - Salvador Dalí

terça-feira, 8 de março de 2011

O nascimento carnavalizado


Ó abre alas, que eu quero passar!!


E em pleno Carnaval, nasceu o blog da Casa Warat SP!

Um espaço lúdico, afetivo, mágico, compartilhado, sensível para redescobrimos a cidade que não é feita só de concreto!

Enfim, um espaço para a carnavalização dessa cidade caótica, que tantas vezes nos sufoca e nos esmaga com seus variados tons de cinza. Essa cidade tão recheada de vida e da ausência dela. Que nunca dorme e que parece tão adormecida, anestesiada. Tão repleta de pessoas e de indiferença.

Sim, o blog nasceu no Carnaval, porque essa cidade precisa ser carnavalizada!!

A carnavalização, que "abala ou enfrenta aqueles princípios, crenças ou mecanismos que colocam a razão acima da vida."

A carnavalização, "uma hostilização dos ritos de ordem, provocados pelo rodízio dos papéis simbólicos, a profanação lúdica do que é culturalmente posto como sublime."

A carnavalização, "um jogo que vira o mundo de cabeça, contragolpeia sobre seus centros reguladores de poder, de medo e de hierarquização".

A carnavalização, em que "Os papéis se trocam, tudo fica carnavalescamente invertido, para dar passo, sem pompas acadêmicas, aos fatos da vida e às pulsões vitais."

A carnavalização, "de esperar o inesperado uma súbita inversão lúdica da percepção rotineira e científica da realidade. É como se o mudo se apresentasse for a dos eixos. Uma busca erótica, ludicamente aguçada."

A carnavalização, "uma maneira lúdica de contar a vida. Um espaço para preencher. Um mundo para criar juntando o político ao erótico, e o corpo às significações. Na carnavalização não pode existir um discurso longe dos corpos sem o cheiro dos desejos."

A carnavalização, "uma febre que nos aguarda para a construção de uma nova afetividade. É uma coragem para não engolir mais as idéias velhas. O velho não produz nada, nem o mundo que quer preservar. Ferozmente, o velho contamina o novo de morte."

A carnavalização, que é "ter o espírito desarmado (carnavalizado) para poder incorporar o novo."

Todos os trechos entre "aspas" são, obviamente, de nosso querido Luis Alberto Warat... e é em nome do rizoma que tão generosamente ele criou que mais esta Casa Warat está nascendo...

Sim, é preciso desarmar, carnavalizar o espírito, para se incorporar o novo, para se ressignificar a vida!! Principalmente numa cidade como São Paulo!!

Pode parecer difícil... Mas abre alas, que eu quero passar!!

(continua...)